sábado, 1 de junho de 2013

Rafael Marques, o jornalista que se recusa a desistir de Angola



Por Rui Marçal/vice.com

Numa altura em que as negociatas e a lavagem de dinheiro são quem mais ordena nas relações entre Portugal e Angola, é especialmente desejável ouvir todas as vozes críticas dessa promiscuidade. No momento em que a Isabel dos Santos se tornou a mulher mais rica de África e em que a esmagadora maioria da população angolana vive com carência várias, o silêncio dos média acaba por ser sintomático do clima que se vive entre os dois países.

Contudo, há uma voz que se destaca pela denúncia dos assassínios, das torturas, da censura e do clima de terror que se faz viver naquele país. Falo de Rafael Marques, o jornalista e activista angolano que já foi raptado e que em 2006 ganhou o Civil Courage Prize. No seu último livro, Diamantes de Sangue, coloca a nu essa realidade.

VICE: Em 2011, publicaste o Diamantes de Sangue. Como é que os angolanos o receberam? É bom lembrar que não o conseguiste publicar em Angola, mas suponho que tenhas levado alguns exemplares…

Rafael Marques: Sim, fiz dois lançamentos em Luanda. A reacção foi muito boa. Venderam-se muitos livros, sobretudo aos militares que tinham interesse em ler e em perceber o que se estava a passar.

Mas tendo em conta a realidade, não chegou a ser um evento anunciado, certo?
É uma realidade que as pessoas conhecem. A única diferença é que foi compilada, contextualizada e apresentada ao público em forma de livro.

Como é que foi possível recolher tantos relatos se o clima de violência e terror é o que se sabe?
Porque é possível encontrar as vítimas em todo o lado. É exactamente por isso.

Mas geralmente as vítimas falam na terceira pessoa. No teu livro, podemos ver relatos pessoais e identificados.
É uma questão de confiança e de relacionamento que o investigador estabelece com as vítimas e com as pessoas. Ao longo dos anos, desde que tenho feito este trabalho de forma consistente, as vítimas criam confiança para revelar todos os dados porque sabem que muitos desses casos acabam por servir de base para processos judiciais.

Reuniste 109 relatos. mas podias ter reunido muitos mais. Aliás, fazes referência a um furto de uma mala que continha formulários…
Mais de 70 casos, que eram os últimos. Só em casa — com base em dados entre 2006 e 2008 — devo ter mais 250 casos. Não tive possibilidade de os publicar, porque já passou algum tempo e também não é possível ter um livro com 500 relatos. O que era fundamental era dar uma ideia do modo sistemático como esses abusos acontecem.

Podes explicar como funciona o negócio entre os generais e as empresas privadas de segurança?
Os generais citados são, ao todo, nove e são sócios da Teleservice, uma empresa privada.

Que já não existe.
A empresa existe, mas deixou de prestar serviços na área dos diamantes. Chama-se Bicuar. Nesta nova empresa está envolvido o alto comandante da polícia nacional e uma alta entidade local.

Mas voltemos à Teleservice…
Os generais como proprietários da empresa e da sociedade que faz a exploração dos diamantes, a Sociedade Mineira do Cuango, tinham um triplo papel: como servidores públicos, como sócios das minas de diamantes e como prestadores de serviços de segurança às minas de diamantes, dos quais eram sócios. Havia aqui um conflito de interesses. A sociedade tem também a Endiama, que é a empresa nacional de diamantes, uma empresa estatal. Portanto, os generais são sócios do Estado.

Os relatos que apresentas são de 2009. Mudou alguma coisa?
Há um mês, ficámos a saber que houve um garimpeiro morto a tiro por um grupo de guardas. A violência continua de forma mais contida porque há a capacidade de denúncia. Por isso é que já não se espera que estes casos sejam acumulados. Há uma denúncia imediata dos abusos que ocorrem. A Teleservice retirou-se da região em Março do ano passado. Este ano, os generais que faziam parte da sociedade de exploração de diamantes com uma empresa alemã retiraram-se todos da sociedade. Excepto o General “Kopelipa”.

Porquê?
Talvez tenham achado que estavam a ser arrastados para uma situação incomportável, ou porque houve desentendimentos.


Achas que o teu livro também teve influência nesse sentido?
Sim, claro. Mas o importante não é reclamar o impacto do livro. O fundamental aqui é garantir a protecção dos direitos dos cidadãos. Agora, se foi pela iniciativa dos livros ou por outras vias… O objectivo principal é a garantia da protecção dos direitos dos cidadãos.

A nós, portugueses, é-nos dada pouca informação sobre a real situação em Angola. Porque é que achas que os nossos média abdicaram de o fazer?
Os angolanos devem ter a capacidade de discutir os seus problemas internamente. Se Portugal dá cobertura ou não a esses assuntos, é uma opção de Portugal, bem como da imprensa portuguesa. Ambos estão no direito de definir quais são as prioridades em termos de cobertura de assuntos internacionais, ou outros. De qualquer forma, devo dizer que sou dos angolanos que mais tem tido espaço na imprensa portuguesa. Logo, quando se fazem diversas iniciativas, não é possível que, no seu todo, a imprensa ignore.

Achas que o facto de não fazermos uma cobertura crítica do regime angolano passa pela influência que os grandes grupos económicos têm sobre os principais grupos de comunicação social?
O regime em Angola quer mandar em Portugal. E porquê? Por causa da língua e por causa da história entre os povos. Os níveis de censura em Angola e a forma como se manietam activistas e o próprio processo democrático tiveram sempre resultados negativos perante todo o esforço governamental. Porquê? Porque há mais angolanos a ver a televisão pública portuguesa do que angolanos a ver a televisão pública de Angola. Os jornais portugueses chegam diariamente a Angola pela TAP e por outras vias. Mas há uma grande circulação de informação entre Portugal e Angola. E com grande impacto.

As famílias angolanas que vivem em Portugal, sempre que sai alguma matéria de interesse, enviam para os seus familiares em Luanda e a notícias reproduzem-se. Portanto, a censura tem a capacidade de amplificar as notícias negativas que saem sobre determinada situação. São precisamente as notícias que o regime quer encobrir que se tornam virais. E saindo na imprensa portuguesa, é muito fácil desmontar, desagregar toda a estrutura de propaganda e de censura que existe em Angola. Então a censura em Angola só tem efeito se for combinada com a censura em Portugal sobre os assuntos de Angola. Essa é lógica.
Recordo-me de que nas últimas eleições angolanas, em 2012, dois observadores portugueses, Azeredo Lopes e Elísio de Oliveira, disseram não ver qualquer irregularidade no processo eleitoral. Curiosamente, ambos foram, respectivamente, presidente e vice-presidente da ERC [Entidade Reguladora da Comunicação Social].
Como é que dois indivíduos se acham, sequer, capazes de fiscalizar eleições num país com 18 milhões de habitantes e mais de um milhão e duzentos mil quilómetros quadrados? E como podem eles certificar que não viram absolutamente nada? Isso só demonstra como a falta de crítica na imprensa permite que se digam tolices dessa natureza.

Mas essas notícias foram, digo eu, mais difundidas em Angola do que em Portugal.
Essa informação é maximizada para efeitos de propaganda. Mas aí é que está: se a imprensa portuguesa tivesse sido crítica em relação aos observadores nacionais, então todo o efeito de propaganda em Angola teria sido diluído.

As notícias que nos chegam passam, sobretudo, sobre a importância crescente que a Isabel dos Santos assume em alguns grupos económicos portugueses (Galp, Zon, etc).
Os angolanos têm plena consciência e sabem que a Isabel é a testa de ferro do pai. Qualquer dia é o presidente, e não a Isabel, que terá de explicar a origem de muita coisa.

No outro dia vi o presidente da UNITA a dizer à SIC que a estabilidade do país era aparente e que se devia questionar a origem do dinheiro angolano. É a tentativa de se resolver pelos outros aquilo que em Angola não se consegue resolver?
Acho que a sociedade portuguesa perdeu muita da capacidade de discernimento quanto à questão angolana. Há, regularmente, dirigentes portugueses em Angola, muitas vezes a fazer declarações que são ofensivas para a dignidade do meu povo. Por que é que um dirigente político angolano não havia de poder pedir contas a Portugal?

Não há muito tempo, tu e a Bárbara Bulhosa, editora da Tinta da China, foram processados pelos nove generais angolanos de que falas no livro. Por difamação. Foste absolvido, certo?
É um engano. O processo continua. O Ministério Público arquivou a queixa-crime e os generais constituíram-se em acusadores privados e submeteram um apelo directamente ao tribunal. O caso está a ser avaliado pelo juiz, a qualquer altura poderá haver um pronunciamento.

A situação pode até ser benéfica para ti porque podes apresentar em tribunal todas as provas que recolheste ao longo dos anos.
Claro, claro. Estou à espera do julgamento. Acho que é uma excelente oportunidade que me oferecem para poder finalmente dar uma plataforma legal às vítimas, para que, pelo menos, tenham algum sentido de que todo este trabalho não foi em vão e que poderão ser ouvidas. Se não em Angola, aqui em Portugal.

As intimidações das quais tens sido alvo vão muito para além destes processos. Em 2003, por exemplo, foste raptado e, em 2010, sofreste uma emboscada. Queres falar do que se passou?
É como o trabalho de um soldado. Nós vamos para as missões conscientes de que tudo pode acontecer. Mas o que é fundamental é mantermos a serenidade e cumprirmos com o nosso papel. Nada mais.

O que se sabe é que, em 2003, foste raptado pela polícia e que os agentes pararam numa ponte contigo. O que se passou?
É o que eu chamaria de "rapto romântico". Em 2003, houve um episódio da ponte, foram polícias que fizeram isso. Fui levado para o comando municipal da polícia de Viana, um dos municípios mais populosos de Luanda. Depois disso, fui interrogado à luz das velas, daí ter dito que foi um rapto romântico. Nunca me fizeram uma pergunta durante todo o interrogatório. Levaram testemunhas embriagadas que afirmaram que eu estava a dirigir uma reunião (quando, na verdade, tinha sido raptado pela polícia na rua) para queimar o acampamento de onde tinham sido transferidos os desalojados da Boavista [um bairro luxuoso de Luanda]. A verdade é que eles levaram os deputados para um lado e apanharam-me isolado na rua. Felizmente, houve um jornalista que me viu a ser levado e a BBC ligou-lhe logo a seguir. Ele deu conta do sucedido, por isso tiveram de me levar para a polícia, não tinham como justificar o meu desaparecimento. Basicamente, foi isso. Fui, segundo o relato, apanhado em flagrante delito a organizar o incêndio [sorri].

Quanto tempo é que esse episódio durou?
Passado uma hora já lá estavam advogados.
Nos momentos em que o medo mais te afecta, costumas pensar que poderias ter seguido outro caminho?
Todos os dias acordamos e perguntamos: “Por que é que estou a fazer isto, por que é que estou a fazer aquilo?” E depois damos conta de que continuamos a fazer a mesma pergunta há 20 anos [risos]. E continuamos a fazer a mesma coisa. É uma questão de convicção. Tenho uma atitude muito positiva. Quanto mais difíceis forem as circunstâncias, mais interessantes serão os resultados da nossa luta. Por exemplo, houve um hacker que conseguiu retirar do meu computador todos os documentos, muitos deles sensíveis, mas isso levou-me a conhecer uma comunidade de peritos em hacking que não teria conhecido, nem teria a preocupação de conhecer, se não tivesse tido esse problema. Da mesma forma que fui atacado, acabei por ganhar amigos para garantir que isso não voltará a acontecer e até mesmo para enviar uma mensagem clara a quem o fez.

Que mensagem é essa?
Consegui rastrear a origem do servidor e até quem contratou os seus serviços.

Podes dizer quem foi?
Quando houver mais informações, será revelado. Mas isso prova que todas as circunstâncias difíceis geram soluções mais interessantes. Não sou do tipo de tomar rotas fáceis. É como ser montanhista, perguntamo-nos: “Por que é que a gente tem de subir a montanha quando existem passagens, ou quando se pode ir de helicóptero ou de avião?” Mas há quem ache interessante escalar uma montanha. É o mesmo conceito de vida.

Nesse momento vês-te sobretudo como um activista? Como se relaciona o teu activismo com a tua actividade profissional de  jornalista?
Neste momento, vejo-me simplesmente como um cidadão angolano. Como é que posso ser jornalista num país onde, na verdade, não existe liberdade de imprensa? Posso escrever num blogue, mas não tenho acesso às fontes de informação oficiais. Não posso telefonar a um ministro e pedir informações sobre determinado assunto. Logo à partida, o meu trabalho está amputado. Não tenho nenhuma organização. Não faço parte de nenhuma associação. O meu trabalho é apenas um exercício integrado de cidadania. Digo integrado porque sempre que posso exerço a minha capacidade profissional para investigar, para escrever. Estudei Antropologia e tenho um interesse especial pelo entendimento de como funcionam as estruturas sociais na região das Luandas e mesmo o comportamento actual dos homens do poder e da sociedade, de uma forma geral. Procuro combinar todos esses conhecimentos para servir a minha pátria e para, como cidadão, ter consciência de que dei o meu melhor. Para mim e para o meu país.

Nunca pensaste em exercer jornalismo noutro país qualquer?
Nunca me ocorreu abandonar Angola. E vou-te dizer porquê: nem o presidente, nem os generais são mais patriotas do que eu. Aquela terra também é minha. Vou lutar para que a devolução do Estado seja feita a todos os angolanos. Aí, no meu país, terei a minha tranquilidade e terei confiança nas instituições do Estado como garantias da democracia, da liberdade e da segurança dos cidadãos.

No final do teu livro, dizes: “Há apenas uma recomendação razoável […] os cidadãos angolanos de bem, sobretudo a juventude, devem desenvolver a capacidade de indignação colectiva […].” Parece-me um pouco vago. Achas que, perante um clima de tamanho terror e violência, é possível uma transição pacífica em Angola?
Não é vago, porque este relato tem que ver com casos específicos. A recomendação é a de que os angolanos devem começar a pensar no interesse comum e o interesse comum não é vago. Passa por sabermos que todos nós precisamos de água, então como devemos retirar a água do rio para as nossas casas? Como devemos retirar a electricidade das barragens para as nossas casas? Precisamos recolher o lixo, como fazemos isso? E como nos organizamos para que as nossas relações se sujeitem às leis que nós próprios estabelecemos? Isso não é vago. Acredito que seja possível uma transição pacífica, mas para isso as pessoas têm de trabalhar e têm de encontrar soluções para que essa transição seja efectivamente pacífica.

O que falta fazer para que se dê esse passo?
Todo este esforço tem contribuído para despertar as consciências. Não se pode fazer uma transição sem um conhecimento adequado da realidade.

No futuro, queres continuar a fazer o que tens feito até aqui, jornalismo de investigação?
Tenho um projecto muito simples: levar uma vida tranquila e escrever livros.

Só isso?
Só isso, nada mais. Em Angola, na minha terra: em Malanje.



Fotografia por Nuno Barroso
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